Damião de Góis
Damião de Góis (Alenquer, 2 de fevereiro de 1502 — Alenquer, 30 de janeiro de 1574), figura ímpar do Renascimento português, foi humanista, historiador e epistológrafo, viajante, diplomata e alto funcionário régio, relevante personalidade do renascimento em Portugal. De mente enciclopédica, foi um dos espíritos mais críticos da sua época, verdadeiro traço de união entre Portugal e a Europa culta do século XVI.
De família nobre, Damião de Góis era filho do almoxarife Rui Dias de Góis, valido do Duque de Aveiro e da sua quarta esposa Isabel Gomes de Limi, descendente de Nicolau de Limi, fidalgo flamengo que se estabeleceu em Portugal.
Entrou em 1511 como pajem de lança ao serviço no paço, onde cedo ganhou a amizade do jovem príncipe herdeiro, D. João (n. 1502). Órfão de pai em 1513, em 1518 recebia moradia como moço de câmara de D. Manuel, onde passou 10 anos contactando com figuras como Cataldo Sículo, humanista siciliano a primeira introdução das ideias dohumanismo greco-latino renascentista em Portugal.
Em 1523 foi colocado por D. João III como secretário da Feitoria Portuguesa de Antuérpia (também, em atenção à sua ascendência flamenga), quando Rui Fernandes de Almada foi nomeado seu feitor.
Entre 1523 e 1545, data do seu regresso definitivo a Portugal, e com excepção de uma breve estadia em 1533, Damião de Góis viveu fora do reino, cumprindo um destino que o fez ser, como diria muitos anos mais tarde, peregrino em muitas terras, adquirindo uma experiência de vida cosmopolita e multiforme.
Nessa Europa da fervilhação intelectual e humana e da diversidade, agora também religiosa, Góis desempenhou missões de carácter comercial e diplomático ao serviço da coroa e do rei, de Antuérpia a Dantzig, de Upsala a Lovaina, de Paris a Vilnius, de Estrasburgo a Cracóvia. Em 1529 estava na Polónia, onde D. João III o enviou para tentar o casamento do infante D. Luís com a filha do rei polaco Sigismundo I.
Em 1531, depois de uma missão na corte da Dinamarca, de novo a caminho da Polónia, Damião de Góis passou por Wittemberg, onde conheceu Martinho Lutero (Martin Luther, monge agostiniano e professor de teologia germânico que se tornou uma das figuras centrais da reforma protestante), e Filipe Melâncton (Philipp Melanchthon, colaborador de Lutero, redigiu a “Confissão de Augsburgo” em 1530 e converteu-se no principal líder do luteranismo após a morte de Lutero).
Em 1533 regressou ao reino a pedido de D. João III. O regresso a Portugal do cosmopolita e já prestigiado Damião de Góis tinha uma razão concreta: D. João III chamava-o para tesoureiro da Casa da Índia, numa escolha que tinha em conta a experiência de Góis na feitoria da Flandres, os conhecimentos e o horizonte largo de quem aconselhava o rei em assuntos de carácter económico, encomendava crónicas, tapeçarias e iluminuras para reis e infantes, privava com artistas e eruditos. Góis não aceitou, no entanto, o convite régio, cessando então também o cargo na feitoria da Flandres.
Nos primeiros meses de 1534 foi hóspede em Friburgo do já idoso Erasmo de Roterdão (Gerrit Gerritszoon ou Desiderius Erasmus Roterodamus, nascido em Roterdão em 28 de outubro1 de 1466 e falecido em Basileia em 12 de julho de 1536, foi um teólogo e um humanista neerlandês que viajou por toda a Europa, inclusive Portugal).
Privou com humanistas como Henricus Glareanus, Johann Amerbach, Albrecht Dürer e Sebastian Münster, partindo depois para Pádua, cuja Universidade frequentou entre 1534 e 1539. Viajou por toda a Itália e conviveu com eminentes figuras do humanismo italiano, como os cardeais Pietro Bembo e Sadoleto, o humanista Lazzaro Buonamico ou o historiador e geógrafo Giovan Battista Ramusio. Conheceu Inácio de Loyola. Completou a sua formação em Lovaina, cujo Colégio Trilingue frequentou, e casou com Joana van Hargen, de família abastada, filha de um conselheiro flamengo da corte de Carlos V. Nesta cidade publicou em latim, que aprendeu tardiamente, os Commentarii Rerum Gestarum in India, em 1539, e em 1540 o erasmizante Fides, Religio, Moresque Aethioporum sub Imperio Preciosi Joanni, obra que lhe granjeou notoriedade nos círculos humanistas da Europa culta.
Em 1545, três anos após o cerco de Lovaina pelas tropas francesas, em cuja defesa participou tendo sido feito prisioneiro e libertado em 1543, Damião de Góis regressou a Portugal com a família, chamado por D. João III e D. Catarina para desempenhar o cargo de mestre do príncipe herdeiro, D. João (n. 1537).
Nesse mesmo ano, em que em Trento se iniciavam os trabalhos do concílio ecuménico, Góis foi pela primeira vez denunciado por heterodoxia à Inquisição, estabelecida no reino em 1536, pelo P. Simão Rodrigues, seu antigo condiscípulo em Pádua, companheiro de Inácio de Loyola e primeiro provincial da Companhia de Jesus em Portugal. Este facto acabou por inviabilizar a nomeação de Góis para aquele cargo, que foi atribuído a António Pinheiro, embora sem outras consequências, dados o prestígio e as relações de Góis com o rei e altas figuras da corte, como o cardeal D. Henrique.
Em 1548, na sequência da prisão de Fernão de Pina pela Inquisição, Damião de Góis foi provido no cargo de guarda-mor da Torre do Tombo. Dispondo das fontes documentais do arquivo régio, e embora não ostentasse o cargo de cronista-mor, que pertencia a António Pinheiro, Góis foi encarregado em 1558 pelo cardeal D. Henrique de redigir a crónica do rei seu pai. Em 1566 saiu a lume a Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, mal recebida em alguns círculos da mais alta nobreza portuguesa. No ano seguinte, a respectiva 1ª Parte foi reimpressa, com profundas alterações, dando Góis também à estampa a Crónica do Príncipe D. João o Segundo do Nome. Manteve intenso contacto epistolar com muitos correspondentes por toda a Europa, e recebia com fasto, alguma ostentação e música quem o visitava na sua casa nos paços do Castelo, em Lisboa.
Em 1571, num clima espiritual e ideológico bem diferente daquele em que pela primeira vez regressara ao reino, no já longínquo ano de 1533, sobrevivente de uma geração desaparecida, Damião de Góis foi de novo denunciado à Inquisição, acusado de heresia. Velho e doente, sem ter agora na corte quem o defendesse, Góis foi preso e sujeito a processo, acabando condenado em 1572 como hereje, luterano, pertinaz e negativo. Esteve preso de Abril de 1571 a Dezembro de 1572, em condições particularmente duras, sendo-lhe confiscados todos os bens. Morreu a 30 de Janeiro de 1574, em episódio de contornos obscuros e ainda hoje controversos, sendo sepultado na igreja de Santa Maria da Várzea, em Alenquer.
Embora já em 1532 tivesse dado à estampa, em Antuérpia, a Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis, relativa à estadia em Portugal do embaixador etíope Mateus, em 1514, sua primeira obra impressa, o nome de Damião de Góis foi revelado ao mundo culto sobretudo com a publicação da citada obra Fides, Religio Moresque Aethiopum A propósito da embaixada do rei David II a D. João III, em 1526, chefiada pelo bispo Zagazabo, Góis publicou em 1540 aquele opúsculo, onde defendia posições fiéis aos evangelismo erasmiano, considerando que certas diferenças rituais e doutrinárias do cristianismo etíope, que tanto haviam na altura escandalizado os zelosos teólogos da corte portuguesa, não podiam impedir a sua comunhão com a Igreja de Cristo. Esta obra teve amplíssima repercussão europeia, com sucessivas edições em Paris, Lovaina e Bruxelas, sendo objecto de tradução inglesa por um dos filhos de Thomas More; em Portugal, onde desde 1539 os livreiros eram compelidos a entregar as listas dos livros existentes nos seus estabelecimentos, a sua circulação foi proibida em 1541 pela Inquisição.
Na sua condição de humanista de grande audiência e de personalidade próxima da coroa, coube a Damião de Góis desempenhar o papel activo de noticiar e legitimar, na Europa, as mudanças profundas e os novos equilíbrios que decorriam da expansão portuguesa, designadamente no Oriente. Assim ocorreu com a defesa da legitimidade do monopólio português das especiarias orientais, alvo de contestação na Europa. É conhecido o episódio da edição de 1527 das Chrysostomi Lucubrationes, que Erasmo dedicou a D. João III, dedicatória retirada da edição de 1530, em virtude do desagrado que a sua alusão negativa ao monopólio das especiarias suscitou na corte portuguesa. Góis sustentou com o genovês Paulo Jóvio, em latim, acesa polémica em torno da matéria, atentamente seguida nos círculos humanistas. Nela, Góis dava voz às posições oficiais da coroa portuguesa, alegando que tal comércio era sobretudo um meio para levar a mensagem de Cristo até tão longínquas paragens. Em 1549, fazia publicar em Lovaina a obra De Bello Cambaico Ultimo Commentarii Três, sobre as vitórias de D. João de Castro no Oriente, dedicada ao infante D. Luís.
Como historiador, Damião de Góis ergueu uma obra sólida, demonstrando rigor e imparcialidade no apuramento e na exposição dos factos, nem sempre, como vimos, concitando o agrado de todos. Além disso, a Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel evidenciava bem, em alguns dos seus passos, o conhecimento directo da corte e da figura do rei, que Góis soube tornar em vantagem.
A Crónica reflectia também, num plano mais largo, os caminhos da historiografia portuguesa do século XVI, definitivamente condicionada pela expansão marítima e pela construção do império. A conjuntura em que se desenvolveu a historiografia de Quinhentos mostrava-se favorável ao registo quase exclusivo dos sucessos de além-mar, em particular do Oriente, configurando-se um discurso progressivamente autónomo sobre a Expansão. Neste quadro, não espanta que o predomínio dos factos relativos ao império seja indiscutível na economia narrativa da crónica do rei D. Manuel. Além de Góis, os maiores historiadores do século XVI, como Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros e Diogo do Couto, reflectem essa inflexão historiográfica, que se afirmou na confluência de um já longo processo de acumulação de materiais indispensáveis à elaboração de sínteses narrativas, e da afirmação de um discurso ideológico de celebração do processo expansionista. Até cerca de 1630 a historiografia mostrou bem este ascendente, ocupando as narrativas da presença portuguesa na Ásia cerca de 70% do total. Curiosa mistura de humanismo e negócio, de latim e de açúcar, na lapidar expressão de António José Saraiva, Damião de Góis, num percurso de vida em que reencontramos tantos dos desafios, encruzilhadas e contradições da vida portuguesa e europeia de Quinhentos, recorta-se, sem dúvida, como uma das grandes figuras do Renascimento português, na sua face mais irradiante e cosmopolita.
Obras
As suas maiores obras em latim e em português são históricas. Incluem a Crónica do Felicíssimo Rei Dom Emanuel (quatro partes, 1566–67) e a Crónica do Príncipe Dom João (1567). Ao contrário do seu contemporâneo João de Barros, ele manteve uma posição neutra nas suas crónicas sobre o rei Dom Manuel I e do seu filho o príncipe João, depois João III de Portugal.
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Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Ioannis … (Antuérpia 1532; nova ed. in: Elizabeth B. Blackburn, "The Legacy of ‘Prester John’", Moreana 4, 1967, 37–98)
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Ecclesiastes de Salamam, com algũas annotações neçessarias (Veneza, 1538; nova ed. de T. F. Earle, O Livro de Eclesiastes, Lisboa, 2002)
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Livro de Marco Tullio Ciçeram chamado Catam maior, ou da velhiçe, dedicado a Tito Pomponio Attico (Venezia, 1538)
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Fides, religio, moresque Aethiopum … (Lovanii 1540; Parisiis ²1541; tr. alemã: Siegbert Uhlig und Gernot Bühring: Damian de Góis' Schrift über Glaube und Sitten der Äthiopier. Wiesbaden: Harrassowitz, 1994. Aethiopistische Forschungen; Bd. 39. ISBN 3-447-03512-9)
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Deploratio Lappianae gentis (Lovanii 1540)
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Urbis Olisiponis descriptio (Évora, 1554; Frankfurt, 1603; Coimbra, 1791; tr. inglês New York, 1996)
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Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel (Lisboa 1566–67; ²1619; Coimbra 1926)
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Crónica do Principe D. João (Lisboa, 1567; nova ed. de Graça Almeida Rodrigues, Lisboa, 1977)
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As cartas latinas de Damião de Góis, ed. Amadeu Torres, in Noese e crise na epistolografia latina goisiana (Paris, 1982)
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Partituras gratuitas de Damião de Góis na CPDL, a Biblioteca Coral de Domínio Público
in Wikipedia - Damião de Góis
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dami%C3%A3o_de_G%C3%B3is
in Damião de Góis (1502-1574) , de Ana Isabel Buescu
http://www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content.php?printconceito=792